quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Maestro

Confesso que ainda está a custar a entrar. Ainda estou à espera de chegar sexta-feira às 20h30 ao ensaio, sem atrasos (sim, porque temos 15 minutos de tolerância, e quem os ultrapassa, “escusa de ficar para tocar!”) e o ter lá, sentado no banquinho, já com aquele ar um bocado frágil, confesso, pronto para receber dois beijinhos meus e um cumprimento de qualquer outra pessoa que entre para o ensaio. Depois há-de me dizer “hoje o Humberto não vem, tens de te agarrar ao baixo…”, ao que eu vou reclamar e dizer “hoje também?” e ao que ele vai responder, com um encolher de ombros “desemerda-te!”. Lá hei-de pegar no baixo, e ir para o meu cantinho. Há-de chegar o Red River Rock, e ele há-de esperar que a minha introdução na guitarra esteja boa. Mas não está, nunca está. Então ele vai bater com as mãos nos joelhos num acto de frustração, mas não vai deixar a música adiantar enquanto não sair como deve de ser. Lá vou eu andar de volta daquela introdução, porque o solo corre-me sempre melhor, fora o fim. Quando ele notar, há-de encolher os ombros mas acenar com um “fixe” com a mão, para dizer que estive bem. E aí vou sentir-me orgulhosa da bela porcaria que apresentei. Entretanto havemos de tocar o A Night Like This, no qual o meu solo, também na guitarra, corre sempre melhor. E ele há-de sorrir e acenar com a cabeça como quem diz que estive bem, outra vez. No fim do ensaio, hei-de ir dar-lhe dois beijinhos para me despedir, e ele há-de resmungar, e dizer “oh Fia, no próximo ensaio faz favor de me trazer o Red River bem!”. Hei-de dizer que não tenho tido tempo para ensaiar e que nem tenho a guitarra em Coimbra, o que me impede de o fazer. Ele há-de encolher os ombros outra vez e esperar pelos meus dois beijinhos, eu hei-de lhos dar, e despedir-me com um “até logo”, porque já sei que hei-de acabar a minha noite em casa dele. E hei-de o ver ainda antes de ele se ir deitar. Para na próxima sexta-feira o processo se voltar a repetir.
Mas isto é a sério. Acho mesmo que ele ainda não se foi. Ainda não me entrou na cabeça que nunca mais o vou ver. Que nunca mais vou ouvir aquelas histórias que ele tanto gostava de contar, e que eu ouvia como uma criança a ouvir uma história de aventuras. Que nunca mais vou ver aquele sorriso maroto e aquele brilho nos olhos quando ele as contava. Que nunca mais o vou ouvir resmungar e ralhar comigo. Juro que até essa parte me custa.

Perdi um Maestro. Perdi um amigo. Ponte de Sor perdeu a música. A orquestra perdeu um pai.
Até sempre, Maestro. Obrigada pela paciência, pela música, pelas histórias, e por todo o resto.

Espalhe muita música aí seja onde estiver, que enquanto eu puder (e tanto quanto sei, a orquestra), vou espalhá-la cá por baixo, por si.

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Gosto mesmo muito de si.

3 comentários:

Romicas disse...

Lindo!
BJs

Clara disse...

Oh Fia... Isto está lindo.
Partilho exatamente os mesmos sentimentos que tu... Custa muito, mesmo muito a acreditar e a aceitar.
Tb penso que vai chegar a 6a e ele vai lá estar à nossa espera.
Estou muito triste. Todos estamos.
Acho que nunca estamos preparados para estes desfechos.
Agora resta-nos ser muito fortes (apesar de me teres posto a chorar!) e continuar a espalhar aquilo que ele mais amava: a música.
Beijinho Fia
Um outro muito especial para este grande Senhor que hoje nos deixou, mas que nunca, nunca, será esquecido. Até sempre Maestro.

Papagaio disse...

Nestas alturas, devemos pensar tudo aquilo de bom que nos ligava (liga!) a essa pessoa, pensa que a estas horas já se reencontrou com o avô, já deverá ter dado notícias nossas e decerto terá discutido com o São Pedro que as harpas que os anjos e querubins tocaram aquando da sua entrada no céu estavam desafinadas. Já terá discutido com o São Pedro e marcado um ensaio para a próxima sexta feira, já terá posto o avô ao órgão, ele à bateria e o pobre do São Pedro terá suspirado e pensado como o céu era mais calmo antes daquele 'artista' chegar!